Precisamos falar sobre mulheres gouines

Não é novidade para ninguém que eu não gosto de ser penetrada no sexo. Essa é uma informação que compartilho com meus amigos e colegas fetichistas. Também não é novidade que critico nossa cultura heterossexista, que tenta impor o coito heterossexual como natural e necessário para uma vivência sexual completa. No entanto, ultimamente, como estou no último ano de mestrado e pretendo ingressar em um doutorado, andei pensando sobre temáticas que poderia abordar em meu projeto de pesquisa, e o gouinage foi um assunto pelo qual tenho me interessado cada vez mais.

Para quem nunca ouviu falar do termo, gouinage significa sexo sem penetração. Isso não deveria ser surpreendente para BDSMers e fetichistas, já que estes costumam compreender que sexo não é sinônimo de coito ou penetração. Porém, na comunidade baunilha, o gouinage ainda é pouco conhecido, o que é uma pena. E, procurando por grupos de gouinage para participar, notei que a prática tem maior circulação na comunidade gay, e não encontrei nenhum grupo ou coletivo de mulheres gouines. Isso não significa que esses grupos não existam, mas certamente eles não são facilmente encontrados.

O que é uma mulher gouine, afinal?

Se o gouinage é sexo sem penetração, então uma pessoa gouine é aquela que não pratica ou não gosta da penetração nas relações sexuais. Nesse sentido, uma mulher gouine seria aquela que não gosta de penetrar (sim, nós mulheres podemos penetrar!) nem de ser penetrada durante o sexo. Porém, nesta postagem, falarei das mulheres gouines fazendo referência principalmente às mulheres que, como eu, não gostam de ser penetradas.

Como é de praxe em todo texto sobre gouinage, vou fingir que tenho aqui um leitor engraçadinho e ignorante que vai me perguntar: “mas se elas não gostam de ser penetradas, como fazem sexo?”. Comendo seus parceiros ou parceiras. Pronto, fim de papo! Bem, pode ser isso. Uma mulher pode, sem dúvidas, transar com um cintaralho penetrando outra pessoa. Também pode dar e receber sexo oral, além de praticar masturbação mútua com toda a sorte de brinquedos sexuais e vibradores que as sex shops têm a oferecer. É claro, como estamos tratando de mulheres que não gostam de ser penetradas, o clitóris deve ser (como deveria ser em todas as relações) a parte do corpo mais estimulada. Por isso, recomendo sempre o massageador estilo varinha mágica, que nunca falha em trazer orgasmos maravilhosos.

“Mas e o homem, como fica”?, perguntará o leitor que não consegue em um momento não pensar no próprio falo. Ué, ele que se vire. Não consegue gozar se masturbando? Pois masturbe-se! Com certeza consegue gozar com oral também, ou friccionando-se contra uma parte externa do corpo da mulher. Não é problema meu, nem de nenhuma mulher. Não estamos neste mundo para fazê-los gozar. E segredinho: tudo bem se o homem ficar sem gozar às vezes, viu? Não vai matar não…

Por que as mulheres não falam sobre gouinage?

Com a dificuldade de encontrar mulheres assumidamente gouines para conversar, resolvi pesquisar matérias jornalísticas sobre o gouinage. E descobri que tem muita reportagem ruim por aí. Para começar, as matérias tratam o gouinage assim como tratam fetiches em geral, e, principalmente, a inversão: trata-se de uma experiência empolgante e interessante… para uma noite. As revistas femininas não retratam o gouinage como um modo de vida, como uma opção viável a longo prazo, mas tão somente como uma aventura picante para salvar uma relação semimorta (como é o caso da maior parte das relações heterossexuais). Isso desmoraliza o gouinage, caracterizando-o como uma prática exótica, mas acessória e dispensável.

Outro erro dessas matérias é tratar as mulheres gouines como doentes. A patologização do corpo feminino não é novidade (Foucault e os estudos feministas que o digam!), mas o corpo feminino que não se enquadra nos padrões heteronormativos é especialmente atacado, deslegitimado, encarcerado e medicalizado em nossa sociedade.

Uma das matérias que li, por exemplo, elencava quatro motivos possíveis para uma mulher não gostar de penetração durante o sexo, sendo eles: falta de lubrificação vaginal, DSTs ou endometriose, posições sexuais desconfortáveis ou problemas psicológicos, como vocês podem observar na imagem abaixo:

Em nenhum momento a matéria simplesmente diz que um dos motivos para não se gostar de penetração é simplesmente o próprio gosto pessoal de cada mulher. A matéria pressupõe que a mulher gosta de ser penetrada, e que “fatores adversos” (como doenças ou uma mente debilitada) podem levá-la a não gostar dessa prática. E ainda: o único motivo para que uma mulher não goste do coito, segundo a revista, é o desconforto. Por trás dessa premissa, existe a falsa ideia de que o sexo penetrativo é, naturalmente, confortável, e que o desconforto nessa prática provém de um corpo feminino que não funciona corretamente: ou ele não produz lubrificação o suficiente, ou está infectado por DSTs, ou é psicologicamente inapto, ou está mal posicionado. Isso, é claro, é um pensamento falacioso. Trata-se, mais precisamente, da falácia do apelo à natureza, que propõe que uma coisa é boa porque é “natural” ou ruim porque é “antinatural”. No entanto, só porque o coito é visto como “natural” (e questiono até mesmo que seja natural na nossa espécie), não quer dizer que seja confortável ou prazeroso para os envolvidos.

Com matérias desse tipo povoando a Internet, não é de se espantar que muitas mulheres que não gostam de penetração não “saiam do armário” e não se identifiquem como gouines. Afinal, quem gostaria de descobrir que suas preferências sexuais são patologizadas pela sociedade? Poucas mulheres estão dispostas a se expor diante de um mundo patriarcal e falocêntrico, que, infelizmente, não poupará esforços para desmoralizá-las e deslegitimá-las.

As falácias a respeito do gouinage (e como identificá-las)

As falácias a respeito do gouinage não se encontram apenas nas matérias jornalísticas em si (que muitas vezes não conhecem suficientemente o assunto de que estão tratando), mas principalmente nos comentários dessas matérias. Existem, sim, pessoas que comentam com muito respeito e interesse pelas práticas, mas também há aqueles que fazem comentários preconceituosos e que encapsulam bem a visão da sociedade sobre as sexualidades desviantes ou não normativas. Vamos examinar alguns exemplos.

  • Evidência anedótica

Neste exemplo, o autor da mensagem diz que ama a penetração, tentando, assim, deslegitimar a matéria a respeito do gouinage. Esta é uma falácia de evidência anedótica, em que a pessoa tenta invalidar seu interlocutor por meio de uma experiência pessoal ou individual. Assim, essa pessoa crê que só porque ela gosta de penetração as outras pessoas têm de gostar também (ou que pessoas que não gostam de penetração não existem). Obviamente, a existência de pessoas que gostam do coito não invalida as experiências e preferências de quem não gosta.

  • Espantalho e ad hominem

Por sua vez, os dois exemplos acima ilustram as chamadas falácias do espantalho e ad hominem. A primeira dessas falácias, a do espantalho, exagera um argumento de forma a torná-lo mais fácil de ser atacado. No primeiro comentário, o autor distorce o argumento do texto — de que o gouinage existe e é uma prática prazerosa —, afirmando que “essas feministas querem acabar de vez na forma de ter prazer”. Cria-se, assim, um espantalho: quem defende a visibilidade do gouinage quer acabar com as possibilidades de prazer alheias (o que, obviamente, não é verdade, mas as falácias não se importam com a realidade ou com fatos). No segundo comentário, por sua vez, a falácia do espantalho se explicita por meio da comparação feita pelo autor de que sexo sem penetração “é a mesma coisa que comer doce sem açúcar, ou tomar cerveja quente”. Com essa frase, o autor da mensagem transforma o gouinage em algo negativo — uma experiência incompleta, sem graça —, e, assim, torna a prática mais suscetível de ser atacada por pessoas leigas.

A segunda falácia presente em ambos os comentários, o argumentum ad hominem, ocorre quando se ataca a pessoa que apresenta um argumento, e não o conteúdo do argumento em si. Desse modo, os comentaristas atacam as pessoas que, supostamente, teriam inventado o gouinage. Assim, no primeiro comentário, o autor afirma que as feministas criaram o gouinage para acabar com o prazer e que trata-se de uma “baboseira”, enquanto que no segundo comentário o autor afirma que o gouinage é “coisa de brocha, de gente sem noção”. Nos dois casos, os supostos inventores do gouinage (as feministas que falam “baboseira” e os brochas “sem noção”) são atacados, de forma que os comentaristas criam a ilusão de estarem corretos quando, na verdade, nem se dão ao trabalho de argumentar propriamente.

  • Deslize escorregadio

No exemplo acima, encontra-se uma das falácias mais utilizadas por conservadores para causar medo e insegurança a respeito de mudanças sociais: a falácia do deslize escorregadio ou da bola de neve. Essa falácia supõe que a partir de uma decisão presente, o futuro vai se tornar terrível, e, portanto, essa decisão deve ser evitada a todo custo. No comentário, isso se explicita pela afirmação de que se as pessoas praticarem o gouinage, em breve o sexo “será por telepatia”. Em outras palavras, o internauta sugere que se as pessoas começarem a aceitar que o sexo não precisa necessariamente do ato da penetração para ser prazeroso e legítimo, em pouco tempo o sexo não envolverá mais o contato físico. Isso, é claro, além de falacioso, é extremamente misógino e falocêntrico: esse tipo de pensamento deslegitima qualquer tipo de sexo que não envolva o ato da penetração e, em última instância, o próprio falo.

  • Incredulidade pessoal

Outro tipo de falácia constantemente utilizada quando se fala em sexualidade é a falácia da incredulidade pessoal. Nesse tipo de falácia, afirma-se que por uma ideia ser difícil de compreender, ela é automaticamente falsa. A falácia da incredulidade pessoal também é comumente evocada em discussões a respeito da esfericidade da Terra e da veracidade da Teoria da Evolução, dentre outras noções científicas que, muitas vezes, não são óbvias para um leigo, mas que, se propriamente estudadas, tornam-se compreensíveis. Em outras palavras: só porque você não consegue entender determinada ideia ou linha de pensamento, não quer dizer que ela seja falsa. No exemplo acima, o comentarista diz não conseguir imaginar uma relação sexual gouine, concluindo que esse tipo de relação é algo “muito estranho” e implicitando que, portanto, o gouinage não tem legitimidade como prática sexual. Contudo, apenas porque o internauta não consigue conceptualizar o sexo gouine, não significa que ele não exista ou, tampouco, que seja menos prazeroso do que outras formas expressão sexual.

  • Falsa dicotomia

Por fim, a última falácia que pretendo desmentir nesta postagem é a falácia da falsa dicotomia, do falso dilema ou do pensamento preto e branco. Essa falácia descreve uma situação em que duas alternativas mutuamente exclusivas são colocados como sendo as únicas opções, quando na realidade existem outras opções que não foram consideradas. No primeiro comentário, o aspecto dicotômico dessa falácia lógica pode ser observado pela separação das pessoas nas categorias “homens” e “não-homens”. Segundo o autor do comentário, os “homens” gostam de meter, e os “não-homens” não. Assim, cria-se um falso binarismo, mais uma vez sustentado em preconceitos e misoginia. Atrelando a masculinidade ao ato da penetração, o comentarista reproduz discursos cristalizados sobre gênero e sexualidade. Esses discursos, obviamente, são inverdades, uma vez que existem homens gouines (ou seja, que não gostam de penetrar e nem de serem penetrados) de todas as orientações sexuais. Da mesma forma, existem mulheres e pessoas genderfluid, não-binárias e de outras identidades de gênero que gostam de penetrar seus parceiros. Portanto, existem tanto homens que não gostam de penetrar, quanto “não-homens” que gostam. Assim, a dicotomia do comentarista não se sustenta, uma vez que a performance da penetração não define o gênero de ninguém.

Já no segundo comentário, verifica-se a construção de uma falsa dicotomia entre “preliminares” e “penetração”. Apesar de dizer que as preliminares são uma maravilha, o comentarista afirma que na ausência da prática da penetração não haverá “nem graça nem prazer” na relação sexual. Nesse sentido, a argumentação sugere uma situação dicotômica na qual as preliminares são equivalentes ao sem-graça e sem-prazer, enquanto que a penetração seria equivalente à graça e ao prazer. A essa altura do texto, eu não precisaria nem dizer que isso é mentira: a penetração não tem o monopólio do prazer sexual. Além disso, sustentar que é preciso haver coito para que o ato sexual seja significativo e prazeroso é subordinar a sexualidade feminina à presença masculina, ao pênis e, em última instância, à heterossexualidade. A ciência já provou que o clitóris é o único órgão do corpo feminino cuja função é exclusivamente dar prazer, e que o interior da vagina e do ânus têm pouca sensibilidade, de forma que faria muito mais sentido associar o que se chama de “preliminares”, ou seja, a estimulação externa do corpo, ao prazer. Fica óbvio, portanto, o conteúdo falacioso dessa argumentação.

Considerando o grande número de falácias utilizadas para deslegitimar a prática do gouinage, deixo aqui um resumo das principais falácias lógicas e suas explicações, para que vocês possam sempre manter-se questionadoras diante de argumentos misóginos, desinformados e preconceituosos.

Mulheres Gouines Brasil

Tendo em vista o estigma e o isolamento que recai sobre as mulheres gouines brasileiras, criei o grupo do Telegram Mulheres Gouines Brasil, que tem por objetivo reunir mulheres que não gostam de ser penetradas para que possam compartilhar experiências, vivências e saberes. Trata-se, assim, de um grupo de conversa e discussão da temática do gouinage sob uma perspectiva feminina. Peço aos homens, porém, que não entrem no grupo, já que se trata de um espaço exclusivamente feminino (enfatizo isso porque muitos homens entram no grupo sem serem convidados, o que é muito incômodo para dizer o mínimo).

Assim sendo, deixo o link do grupo aqui, para que todas as mulheres que não praticam ou não gostam da penetração sintam-se acolhidas, legitimadas e abraçadas: https://t.me/joinchat/D-WcxOmThBE5NDQx

Sejam todas muito bem-vindas!

Publicado por A Rainha da Rosa Azul

Dominatrix, pesquisadora e escritora.

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